sábado, 29 de setembro de 2012

ESCUTATÓRIA

ESCUTATÓRIA ( Rubem Alves)

Sempre vejo anunciados cursos de oratória. Nunca vi anunciado curso de “escutatória”.
Todo mundo quer aprender a falar. Ninguém quer aprender a ouvir.
Pensei em oferecer um curso de escutatória. Mas acho que ninguém vai se matricular
Escutar é complicado e sutil.
Diz Alberto Caeiro que “não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. É preciso não ter filosofia nenhuma”. Filosofia é um monte de ideias, dentro da cabeça, sobre como são as coisas. Para se ver, é preciso que a cabeça esteja vazia.
Parafraseio o Alberto Caeiro: “Não é bastante ter ouvidos para ouvir o que é dito; é preciso também que haja silêncio dentro da alma”. Dai a dificuldade: a gente não aguenta ouvir o que o outro diz sem logo dar um palpite melhor, sem misturar o que ele diz com aquilo que a gente tem a dizer, que é muito melhor.
Como se aquilo que ele diz não fosse digno de descansada consideração e precisasse ser complementado por aquilo que a gente tem a dizer, que é muito melhor.
Nossa incapacidade de ouvir é a manifestação mais constante e sutil de nossa arrogância e vaidade: no fundo, somos os mais bonitos...
Tenho um velho amigo, Jovelino, que se mudou para os Estados Unidos, estimulado pela revolução de 64. Contou-me de sua experiência com os índios: reunidos os participantes, ninguém fala. Há um longo, longo silêncio.
Os pianistas, antes de iniciar o concerto, diante do piano, ficam assentados em silêncio [...], abrindo vazios de silêncios, expulsando todas as ideias estranhas. Todos em silêncio, à espera do pensamento essencial. Ai, de repente, alguém fala. Curto. Todos ouvem. Terminada a fala, novo silêncio. Falar logo em seguida seria um grande desrespeito, pois o outro falou os seus pensamentos, pensamentos que ele julgava essenciais. São-me estranhos. É preciso tempo para entender o que o outro falou.
Se eu falar logo a seguir, são duas as possibilidades. Primeira: Fiquei em silêncio só por delicadeza. Na verdade, não ouvi o que você falou... Enquanto você falava, eu pensava nas coisas que iria falar quando você terminasse sua (tola) fala. Falo como se você não tivesse falado. Segunda: Ouvi o que você falou. Mas isso que você falou como novidade, eu já pensei há muito tempo. É coisa velha para mim. Tanto que nem preciso pensar sobre o que você falou. Em ambos os casos, estou chamando o outro de tolo. O que é pior que uma bofetada.
O longo silêncio quer dizer: ” Estou ponderando cuidadosamente tudo aquilo que você falou.” E assim vai a reunião.
Não basta o silêncio de fora. É preciso silêncio dentro. Ausência de pensamentos. E ai, quando se faz o silêncio dentro, a gente começa a ouvir coisas que não ouvia. Eu comecei a ouvir.
Fernando Pessoa conhecia a experiência e se referia a algo que se ouve nos interstícios das palavras, no lugar onde não há palavras. A música acontece no silêncio.
A alma é uma catedral submersa. No fundo do mar – quem faz mergulho sabe – a boca fica fechada. Somos todos olhos e ouvidos. Ai, livres do falatório e dos saberes da filosofia, ouvimos a melodia que não havia, que de tão linda nos faz chorar.
Para mim, Deus é isto: a beleza que se ouve no silêncio. Daí a importância de saber ouvir os outros: a beleza mora lá também. Comunhão é quando a beleza do outro e a beleza da gente se juntam num contraponto.
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Nota: Rubem A. Alves nasceu em Boa Esperança – Minas Gerais – em 1933. Estudou música e, teologia. Foi pastor numa igreja de Lavras, onde, de l958 a l964, conviveu com o povo, vivendo dores e alegrias dos outros. ” Assim vivem pastores protestante” e, imagino, sacerdotes católicos.” Fez seu doutoramento em Princeton, Estados Unidos. Escreveu diversos livros e continua a escrever e a fazer palestras. Ele, acima de tudo, é um poeta. Num livrinho precioso. Intitulado “O que é Religião” - com mais de dez edições -, ele diz concordar com Octávio Paz que escreveu :”A tarefa do intelectual é fazer rir pelos seus pensamentos e pensar pelos seus chistes”.

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